Por: Ricardo Setti
A inédita, surpreendente declaração do papa Francisco no avião que o levou de volta a Roma depois da viagem ao Brasil — “Se uma pessoa é gay e procura Deus, quem sou eu para julgá-la?” – poderá indicar mudanças na rígida condenação católica à união de pessoas do mesmo sexo.
E ocorre num momento em que deverá ser legitimada num dos grandes países do mundo, e onde pouco se esperava: o Reino Unido, e por iniciativa do governo do primeiro-ministro David Cameron, líder do Partido Conservador.
Desde que foi aprovado pelo Parlamento da liberal Holanda, em 2001, o casamento entre pessoas do mesmo sexo vem se espalhando lenta mas seguramente por países do Primeiro Mundo, alcançou nações como a Argentina, o Uruguai, a África do Sul e a Nova Zelândia — e está a um passo de incluir o Reino Unido.
Indo além dos tradicionalmente mais tolerantes trabalhistas, que durante seu mais recente período no poder — de 1997 a 2010 — legalizaram as “uniões civis” entre homossexuais, Cameron transformou o casamento pleno entre pessoas do mesmo sexo em um dos baluartes do que chama “conservadorismo com compaixão”, postura que soma atitudes visando obter apoio eleitoral em segmentos que dificilmente votam em seu partido com a filosofia tradicionalmente pró-mercado em matéria econômica e de restrição a benefícios sociais dos tories, os conservadores britânicos.
O projeto concedendo plenos direitos a homens ou mulheres que se unam a pessoas do mesmo sexo foi apresentado ao Parlamento no início do ano, já passou por duas votações na sisuda Câmara dos Lordes e uma na Câmara dos Comuns (deputados), e está agora sendo examinado por comissões antes de voltar ao plenário para a votação final — e seguir para a assinatura da rainha Elizabeth.
A “união civil” instituída pelos trabalhistas previa, fundamentalmente, os mesmos direitos do casamento a gays e lésbicas que se unissem perante a lei — em temas como manutenção dos filhos, pensão, seguros, herança e direitos no terreno da imigração. O problema estava, como ainda está, no reconhecimento dessa situação para pares britânicos no exterior, mesmo dentro da União Europeia.
A iniciativa de Cameron equipara as uniões homossexuais ao casamento entre homem e mulher, com a esperteza política de que a Igreja Anglicana, oficial no país, estará expressamente proibida de realizar o matrimônio gay. Sacerdotes de outras religiões não poderão ser obrigados a celebrar cerimônias desse tipo. Cameron quis evitar a cristalização da desunião ideológica existente entre os anglicanos, já que um considerável setor da igreja – em parte coincidente com a facção que defende o direito de as mulheres serem bispas – é a favor do casamento gay.
Com a adesão da Grã-Bretanha, serão dez os países europeus a tornarem legal o casamento gay (os demais são Holanda, Bélgica, Espanha — o primeiro país de maioria católica no mundo a fazê-lo, em 2005 –, Portugal, Suécia, Noruega, Islândia, Dinamarca e França), algo que ocorre também em outras quatro nações (Canadá, Argentina, Uruguai e África do Sul), além de ser admitido por decisão judicial no Brasil e vigorar em 13 Estados americanos (a Suprema Corte decidiu que cabe aos Estados legalizar ou não a união homossexual) e três Estados do México.